quarta-feira, agosto 21

Crítica: Os Incompreendidos (1959)


Por Wendell Marcel

"O Antoine Doinel de François Truffaut"


Assistir ao filme Os Incompreendidos (Les Quatre cents coups) é uma experiência muito bonita, pois é o espectador e o diretor conversando sobre cinema, e da infância problemática dele mesmo. François Truffaut, tempos depois de lançar seu primeiro longa-metragem, e depois deste alcançar o sucesso com a premiação em Cannes, negou à imprensa ser Os Incompreendidos um retrato auto-biográfico de sua adolescência, pensando na condição que seus pais estavam, figurando como más pessoas no filme, principalmente sua mãe. Ele se arrependeu de ter realizado este discurso por toda sua vida.


Um dos filmes mais representativos da corrente cinematográfica Nouvelle Vague é até hoje um clássico do cinema francês, que na época de seu lançamento significou o repúdio ao tradicionalismo da cinematografia dos diretores franceses, em especial Jean Delannoy. Os Incompreendidos foi um grito que chegou em todos os cantos do planeta que consumiam cinema. Foi ouvido em diversos países, conquistou prêmios e revelou para os amantes do cinema, e os críticos conservadores, o jovem diretor de apenas vinte e nove anos. Se Truffaut muito se valeu de sua fama de crítico de cinema pelas revistas Cahiers e pela Arts, nas quais diferiu intensas críticas sobre as mesmices do cinema francês, o seu filme constatou que fazer cinema está aquém de recursos ou de uma concepção enfadonha de produção. Ele mostrou o lado dos jovens cineastas assíduos por fazer arte de uma forma prática e substancial.


Entender Truffaut é entender Os Incompreendidos. Entender Os Incompreendidos é compreender Jean-Pierre Léaud (ator que interpreta Antoine). É o artista e a obra máxima. O ator e sua representação. Assim como será no ano seguinte com Jean-Luc Godard e Acossado (À bout de souflle, 1960) e depois com Alain Resnais com Ano Passado em Marienbad (L' Année derniére à Marienbad, 1961), os três maiores cineastas do movimento.


A paixão de Doinel por cinema e literatura são os votos de recorrer a uma realidade diferente da sua em casa: ele não conhece o pai e a referência paterna substituta é de um homem abstrato, quase imperceptível diante das patéticas singularidades, mas lembrado pelo jovem Doinel como um personagem carinhoso; sua mãe, em contrapartida, pouco se importa com ele, retratada dubiamente. Essa mulher errática e distante será um marco para sempre na vida do jovem. Quando questionado pelo professor por ter faltado à escola, Doinel explana inconscientemente a mágoa pela sua mãe, mentindo "Minha mãe morreu"Os pais falam de Doinel como se ele não estivesse por perto: "O que faremos com o garoto no final de semana?". As fugidas de Doinel de casa, os castigos dos professores na escola, as amizades juvenis, as delinquências dos roubos, dos furtos, das peripécias de sustentar um vício da arte, da elocução de não ser pego; as paixões avassaladoras do jovem tímido, apaixonado por todas, não possuem nenhuma categoria romântica. O diretor espera fugir do símbolo teatral, e opta pela crua narrativa. Atentem a trilha sonora, que carrega nas notas compassos memoráveis.


Em outro momento, Doinel leva um tapa na cara diferida pelo seu pai na frente de toda a sala de aula. Decide fugir de casa, envia uma carta de despedida para seus pais. Percorre a cidade durante à madrugada. Com fome, rouba leite, tomando desesperadamente: simbologia para a falta de cuidados pela mãe. Quando já preso no centro de reabilitação, o encontro com a psicóloga é uma das mais representativas do que o jovem Doinel sente diante de sua família, e dele mesmo. A cena é rodada através da improvisação de Léaud, o que transmite grande verossimilhança. 


Antes, no parque de diversões, numa espécie de panela giratória, sente seu corpo ser involuntariamente estático, se contorcendo para tentar se mexer. É a mesma sensação de ter sua mente paralisada diante das normas impostas pelo cinema, pela política e pela sociedade. A crítica de Truffaut é pela liberdade, em todas as suas esferas. Em 68 tornaria ainda mais prática essa ideologia. 


Truffaut/Doinel caminharia entre tantos muros, até se encontrar preso, tendo as suas asas cortadas, no centro de reabilitação para jovens delinquentes. A sequência final, dele correndo sendo perseguido pela câmera de Truffaut num imenso plano-sequência deliciosamente lento, é a procura por algo, por alguém ou por ninguém. Eles (Doinel/Truffaut/Léaud) buscam o nada onde possam encontrar o tudo. É construir uma história particular nas remediações do passado, este tendo que ser em parte esquecido para poder retornar a sua aventura. O mar é o elo nessa troca de fases, representando uma liberdade tão intensamente almejada. 


Antoine Doinel viveu sua adolescência por muitos ângulos. Faltava às aulas para poder ir ao cinema. Roubava os cartazes dos filmes para poder vender futuramente. Criava junto com seu melhor amigo jogos de cinema; roubaram uma máquina de escrever da empresa do seu pai. Se viravam como puderam. Curtiram Renoir e Welles nos cinemas, e se apaixonaram pela coragem e poesia deles. O garoto que não era compreendido pelos pais, pela escola, pelo reformatório/prisão, também não se conhecia.  "Quem são vocês para me julgarem?", parece dizer no quadro final, impressionando o público com intensidade. 



Doinel é o elo voluntarioso de um jovem irado com sua construção, mesmo que inconscientemente. Só resta-lhe o cinema. Só falta-lhe o amor dos pais. Conhecera a literatura clássica lendo Balzac, se apaixona por escrever. O filme Os Incompreendidos atinge o espectador pelo viés de que sempre falta alguma coisa em nossas vidas, e que dificilmente a preencheremos. Essa é a aventura de todos nós, como ensina Doinel neste filme e nas outras quatro sequências, que terminam acompanhando suas aventuras e seus amores. Truffaut, no entanto, nunca mais repetiria tamanha eloquência na cultura da tela em outro filme como foi neste. Esta história épica de um jovem apaixonado por cinema é a mesma de milhares de outros do mesmo período (como muitos dos críticos de François citaram, negativamente). Pode ser, mas ninguém contou com poesia mais pungente essa realidade.



O diretor inicia filmando sua Paris (recorrendo ao estilo de Rosselini, um dos seus grandes ídolos), suas ruas, sua arte, sua luz saturna, sua Torre Eiffel. É bela homenagem à sua cultura, mesmo que dilacerada por ele, mas verdadeiramente amada pelo diretor. Não há dúvida de que Os Incompreendidos seja a Paris de Truffaut: sua amada cidade das luzes e das sombras. Apenas um exemplo é necessário para distinguir a ganância da arte em um homem, a fim de desconstruir o cinema vigente: François Truffaut. Não faltou coragem e nem tão pouco talento para ele. 


Os Incompreendidos é uma obra-prima necessária aos amantes do cinema, para conhecer um dos maiores autores da arte cinematográfica.


Nota: 8,0/10,0





Trailer:

3 comentários:

  1. Bravo!! Fantástico texto!! Faz tempo que não lia uma crítica assim... carregada da essência do próprio filme.

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  2. Parabéns pela publicação !!!
    É possível achar um link para assistir Os incompreendidos online ??
    Se alguém souber de algum e puder publicar, agradeço !!!!

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    1. Você pode baixar por este link: http://www.downloadcult.com/?s=os+incompreendidos

      O site é ótimo e possui muitos outros clássicos.

      Bom filme!

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