sexta-feira, agosto 16

Crítica: Era Uma Vez Em... Hollywood (2019)



Por Maurício Owada

Uma Hollywood que está na memória e nos anseios

Quentin Tarantino sempre demonstrou seu carinho com o cinema expresso em sua filmografia - em cada frame, havia uma homenagem, uma referência e a constatação de mais um filme que conhecíamos entre tantos dos quais ele tanto apreciava. A variedade de gêneros, produções e países era imensa. Do cinema japonês logo para o cinema italiano de Leone, para um plano que relembrava um clássico francês para uma produção B e exploitations... e por aí vai. Esse sempre foi o que nos acostumamos a ver do processo criativo do cineasta até mais ou menos, Django Livre (Django Unchained, 2013).

Apesar dos filmes do Tarantino sempre terem evocado propostas de narrativas diferentes durante o decorrer da carreira, sempre havia uma certa expectativa básica de seus filmes - o plano dos porta-malas, músicas sessentistas e setentistas embalando a trilha sonora, uma violência chocante e gráfica na medida da comédia e do suspense. Mas desde Os Oitos Odiados (The Hateful Eight, 2015), vem quebrando alguns desses códigos, que se desenvolve narrativamente como uma peça de teatro, além de ter explorado o gênero por matrizes diferenciadas - a opção por uma narrativa de thriller e o filme quase todo num cenário só. 

Em Era Uma Vez em... Hollywood (Once Upon a Time in... Hollywood, 2019), Tarantino segue essa linha de não trazer o que tornou seus filmes familiar nos últimos quase 30 anos. A maturidade tanto no roteiro quanto na direção da câmera e seus atores faz o cineasta se aproximar mais ainda daqueles que aprendeu a admirar - na cena do duelo entre Cliff Booth (Brad Pitt) e Bruce Lee (Mike Moh), por exemplo, as mudanças de plano são delineadas pela movimentação da câmera, tão comum nos trabalhos de Akira Kurosawa e Steven Spielberg.

Como um filme metalinguístico, ele se rende a um pouco da auto-referência - entre considerar o ego do cineasta ou entendê-lo a partir de suas inspirações, fica a cargo do público - mas também serve como exercício de linguagem onde ele imerge na narrativa de um seriado em que Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) atua como se estivéssemos assistindo, para mais tarde interromper porque o ator esqueceu as falas e retomar toda a movimentação de câmera de onde começou.

Mas diante de um retrato fiel de uma época saudosa e de transição da indústria hollywoodiana (a recriação de época através dos televisores passando seriados, cinemas projetando filmes em película, letreiros luminosos e garrafais e as publicidades constantes de cigarros), busca-se o retrato do espírito desta época em um olhar contemplativo de memórias nostálgicas de quem não as viveu - fator essencial em entender como a narrativa prossegue e para qual momento específico a narrativa se bifurca - e a construção de uma Margot Robbie angelical se torna essencial para sua Sharon Tate. É claro que o cineasta faz rir do/com seus personagens principais, mas também lhes dá contorno de humanidade que transfere a eles algo pouco comum na filmografia de Tarantino - como dissera Pablo Villaça na sua cobertura em Cannes, fica perceptível o carinho do cineasta com aqueles personagens e Sharon Tate parece ser mais um produto da imaginação do cineasta baseado nas curiosidades e relatos dos bastidores das celebridades do que o retrato fiel em si da atriz cuja vida e carreira foi interrompida de forma cruel.

Mas o filme não é perfeito - o ritmo deliberado é percebido pelo público até entender o objetivo da narrativa e o foco no desenvolvimento dos personagens que não se sustenta em um grande plot de vingança. A referência de feminicídio como piada dentro da história de um dos personagens soa inadequado numa época depois do MeToo, das acusações e prisão do produtor com quem trabalhou desde o começo por assédio e abuso sexual e até de relatos de Uma Thurman de abuso psicológico por parte do próprio cineasta - uma discussão fora do campo da ficção (que já se envolve no evento acerca de Sharon Tate), mas difícil de desvincular quando não se concorda com a ideia de separação entre obra e autor.

O elenco em si é um deleite - Leonardo DiCaprio demonstra cada vez mais sua grande capacidade como ator (independente dos esforços hercúleos de nadar em águas congelantes), principalmente quando explora seu lado cômico como fizera em O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2015), juntamente com Brad Pitt como seu fiel dublê que evoca mistério e uma certa ambiguidade moral típica de um Clint Eastwood na Trilogia dos Dólares, além da própria Margot Robbie que aquece o coração do espectador diante da visão pueril das memórias de um jovem adolescente que se tornou um cineasta maduro.

Era Uma Vez em... Hollywood relembra, ficcionaliza e homenageia um período histórico da indústria cinematográfica americana que ficou no fundo da memória de um Quentin Tarantino menino e maduro, embalado por uma nostalgia do que não viveu, como um sonho bom - sobre a indústria de sonhos, na cidade dos sonhos - que o guarda dentro de uma caixinha e a protege de qualquer mal que o ronde e o corrompa. 

Nota: 8,0/10,0





Trailer:

sábado, agosto 3

Crítica: Quando Explode a Vingança (1971)


Por Maurício Owada


"Qual o significado das revoluções?"


A revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado, ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. 
A revolução é um ato de violência.
Mao Tse Tung 

Um questionamento que sempre surge quando falamos de revoluções é: "para onde nos levarão?" Porque dentro do processo histórico, quando o povo se vê em detrimento dos interesses meramente pessoais de seus tiranos, organicamente, é muito normal que pessoas levadas por movimentos revolucionários se levantem contra a estrutura de poder que oprime elas em diversas esferas.

Ainda que em seu estilo que mistura cenas de uma dramaticidade operística ou momentos engraçados, como já fizera em seus outros faroestes que moldaram sua carreira, Sergio Leone traz consigo um dos seus filmes mais maduros - Era Uma Vez no Oeste (C'era Una Volta il West, 1968) já deixava isso claro quanto a construção e desconstrução do gênero - mas aqui, o discurso político é presente na história dos dois personagens: Juan Miranda, um bandido mexicano interpretado por Rod Steiger e Sean Mallory, um ex-guerrilheiro irlandês vivido por James Coburn.

Se este texto soar mais como reflexão dos temas que Leone aborda do que uma crítica em si, fiquem a vontade. Mas é bom lembrar como Leone sempre teve um jeito muito peculiar de contar histórias, seja uma sequência inteira sem diálogos onde tudo é dito pelos olhares dos personagens e pela trilha sonora sempre majestosa e brilhante de Ennio Morricone. E como isso é muito importante no modo como o cineasta não só é genial na criação do suspense, mas da imersão emocional do espectador para com seus personagens - desde Por Uns Dólares a Mais (Per Qualche Dollaro in Più, 1965), tanto o roteiro quanto a execução dos elementos diegéticos e extra-diegéticos sempre apontam cada vez mais no desenvolvimento dos personagens e na criação de uma empatia com cada um deles cada vez mais forte, conforme Sergio Leone vai fazendo seus filmes.

E esta empatia com os personagens tanto de Juan e Sean vem no contexto da Revolução Mexicana. Ambos homens, clandestinos por onde andam e da terra que lhes deveria servir de acolhimento - um bandido que não acredita nos ideais revolucionários e outro, um perito em explosivos que precisou fugir da Irlanda perseguido por ter seguido a luta armada pelo seu país. E claramente, vemos a construção dos vilões - o exército de Porfírio Diaz quase lembra os fascistas italianos (talvez pelos traços dos atores latino-europeus vivendo latino-americanos, como era comum no casting dos filmes de Leone) - em sua total brutalidade como braços de um Estado repressor. Mas o filme não cai na armadilha de ser sério demais, como é comum nos filmes políticos e é sempre interessante pensar que cineastas aclamados traziam ao processo da narrativa, um pouco de humor - como na cena inicial em que Juan adentra a uma diligência cheia de passageiros burgueses e é constantemente humilhado por aqueles personagens, o chamando de animal, quando temos planos detalhes de suas bocas comendo enquanto riem e debocham numa montagem sensacional de Nino Baragli, numa subversão irônica do discurso daqueles personagens que já aprendemos a odiá-los.

Apesar de ser o seu filme mais político (inserido numa trilogia cuja importância maior já não era mais a representação de um gênero americano pelo estilo italiano, mas a representação da história pelo olhar do cineasta italiano), Leone deixara claro numa entrevista que a Revolução Mexicana no filme era mais um símbolo do que uma representação do real e que seu verdadeiro tema central na verdade era a amizade. E apesar da legenda dura e agressiva que surge no começo do filme, Leone sempre se opõe a ideia do imaginário idealista das revoluções e Juan, diante de sua postura amoral em que partiu pra vida de crimes e acaba aceitando ser parte daquela luta contra a opressão por dinheiro, discursa contra essa fantasia que repercute acerca desses movimentos históricos: tirar aqueles que bebem e dormem no conforto enquanto outros vivem na pobreza para colocar outros que irão beber e dormir no conforto - para logo depois, Sean jogar o livro de Bakunin na lama.

Quando Explode a Vingança (Duck, You Sucker/A Fistful of Dynamite, 1971) é talvez o seu filme menos conhecido, mas talvez pelo apelo do título inusitado, deixe o espectador desarmado pelo seu tom meio debochado e cômico para cenas mais dramáticas e sombrias. Uma das últimas empreitadas de Leone ao gênero faroeste (ele ainda co-dirigiria Trinity e Seus Companheiros, filmando apenas a introdução) para depois, partir para o gênero gângster em Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1985).

E o que fica no final do filme é a pergunta: para onde vou? Depois da vitória, de derrubarmos nossos algozes, a pergunta que fica estampada no rosto em close de Rod Steiger nos deixa desamparados, já que ele corta secamente para o título inusitado que significa "vai se ferrar, idiota!". Enquanto até Era Uma Vez no Oeste, seus protagonistas seguiam seus rumos incertos mas decididos a não ficar, o personagem de Rod Steiger fica desamparado, num grande close, encarando a câmera, interrogativo ao que fazer depois da vitória, já que o processo dos eventos históricos levem aqueles que não protagonizam seus acontecimentos ao mesmo lugar de sempre - e as mudanças se seguem irrelevantes nas suas vidas. Cínico? Talvez sim. Mas acho que é porque é assim mesmo.

Nota: 8.5/10.0




Trailer: