Por Wendell Marcel
"O filme que criou e estabeleceu uma cultura
cinematográfica, e definiu a obra-prima de um gênio"
Parece uma espécie de Déjà vu a filosofia que Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) quer contar sobre a violência dos seres humanos. Apesar de ser uma adaptação do livro homônimo de Anthony Burgess (infilmável), foi somente com o filme de Stanley Kubrick, o qual ele adaptou, que o tema ganhou repercussão no mercado cultural. Na época do lançamento a obra assustou distribuidoras, foi proibida de ser exibida em muitos países e foi elogiada pelos críticos, assim como definhada por outros. Kubrick sabia o que estava fazendo quando resolveu dirigir a incrível e difícil literatura de Burgess. O resultado? A obra-prima de um diretor, e uma das maiores obras representativas da cultura cinematográfica.
A questão da violência naturalizada no filme é interpretada tanto de forma social quanto psicológica. Adentra-se na mente do sujeito sociopata, irado com tudo e cínico com as razões que o levam a espancar, estuprar e colidir com as regras sociais. O Alex de Malcolm McDowell é um ser amoral, que não respeita e desconhece as mínimas e convenientes regras da sociedade. Seu personagem é uma disposição para o que seria hoje o tema de intensas e calorosas discussões sobre juventude, violência e quebra de regras morais, sociais e individuais. Por isso o filme é tão utilizado quando o assunto é violência, aprofundando ainda mais a esfera de sua filosofia, o indivíduo criado pelo âmbito influenciável.
Alex é um jovem infrator que sai com sua gangue nas noites para aterrorizar mendigos, estuprar mulheres casadas e espancar seus maridos; nos intervalos dessas orgias sociopatas, o grupo descansa em um bar tomando leite drogado emergindo dos seios de uma boneca metamórfica. Após as atividades, o jovem líder da gangue volta para casa para escutar Beethoven, cuidar de sua cobra de estimação e se deleitar com as mentiras a fim de faltar à escola, enganar o seu guardião criminal e novamente se preparar para novas aventuras sexuais com quaisquer mulheres que ele sentir necessidade de possuir. No caso, duas!
No entanto, em uma dessas aventuras, Alex, traído por seus companheiros da conceitual ultraviolência, é preso numa casa na qual invadiu, e prazerosamente assassina a dona da casa. É pego fugindo pela polícia. Na prisão, converte-se à religião, e transforma-se numa espécie de aprendiz dos bons e respeitosos costumes, pela influência do padre/pastor/bispo (forever) local. Quando tem a oportunidade de participar de um teste que traz de volta os conceitos morais e saúde mental dos pacientes infectados pela doença social da revolta e da "consciência defeituosa" (o Método Ludovico), agarra a chance de se curar e poder sair daquela teia de repressão psicológica. No entanto, o tratamento que ele passa é bem mais violento que qualquer um de seus atos cometidos anteriormente, que o levaram a estar naquela situação. As sequências do "cinema moral" é fantástica, e a proposta de evidenciar essa cura, no "teatro de tentações", é extraordinariamente eficiente no que concerne identificar, através dos significados da pessoa doente, a devolução, ou reestruturação dos seus conceitos como pessoa pronta a residir no meio social.
Claro, tudo torna-se mais interessante vendo essas sequências acima minimamente relatadas. Os diálogos construídos, a destreza dos ângulos (belamente fotografados), os cortes, a trilha e a magnífica interpretação de McDowell são primordiais para sustentar a proposta do filme. Laranja Mecânica como nenhum outro filme, até então deleta a contribuição do homem como o simples e corrigível culpado de seus atos. Declarar a cura desses indivíduos por um tratamento dão doloroso quanto, é bem amargurante do que aceitar as disposições que assolam a sociedade de crime e porventura o castigo de suas colaborações em dignificar essas relações de culpabilidade. Muitos outros filmes tentam compreender, como este aqui, essas relações entre crime, culpa e cura (A Outra História Americana (1998), Violência Gratuita (1997), Drive (2011) ?, Clube da Luta (1999)), mas nenhum outro é tão poderoso na forma e na classe de refletir o que a sociedade se tornara diante dos olhos dos próprios espectadores (o Outro). Um filme que faz um belo tratamento das falidas instituições da família, da política, da ciência, da religião e do próprio homem corroborado pelos sentimentos e prazeres passageiros. O mesmo prazer que leva à desconstrução de seu próprio Eu.
Nota: 9,0/10,0
Trailer: