Por Conde Fouá
Smith nasceu, foi criado e, quando o filme se inicia ainda vive numa
pequena cidade do Estado de Montana. Um herói sob medida para as pretensões de
Capra: íntegro, ingênuo, idealista, tímido, mas corajoso. Vive sozinho com a
mãe. Seu pai morreu em luta contra os barões da mineração local, a frente de um
pequeno jornal alternativo. O nome Jefferson Smith aglutina as virtudes da
tradição (de Thomas Jefferson) com a alma popular (Smith é um nome comum nos
EUA, como o Silva no Brasil).
Assim como em O Galante Mr. Deeds (1936), a cidade grande aparece como um lugar
carregado de impurezas, que tentarão macular a figura impoluta de Smith. O
homem do cotidiano das ruas, guindado a posição de herói, lutando contra um
leviatã de corrupção, que deságua num final mágico, extraído de algum conto de
fadas esquecido, eis a síntese de sua obra. A missão do senador não será salvar
o capitalismo (que ainda passava por séria crise em 1939) mas sim expor a
opinião pública, o poder de uma máquina política corrupta. O inimigo de Smith é
representado por Paine, que no passado foi o braço direito de seu pai. O
Senador Paine ao tentar destruir o seu companheiro de senado, não luta apenas
para se manter como político, mas sim para eliminar o seu eu incômodo (Smith
representaria o próprio Paine, quando jovem).
O filme, ora tratado, não pode ser rotulado como épico, lírico ou
dramático. Capra parece beber na fonte dos três gêneros para criar uma amálgama
que surpreende o espectador desatento. Ele inicia o filme in medias res,
também se utiliza de um roteiro, que contém uma história, que inconscientemente
seu público (o povo americano) já conhece.
No filme ao chegar em Washington, a primeira coisa avistada por Smith é a
cúpula do Capitólio. Quando ele busca inspiração para o projeto que irá
apresentar no Senado, a lobriga da janela de seu escritório e diz a secretária:
“É aquilo que tem de estar no projeto”. O Lincoln Memorial e o Capitólio se
fundem na trama como se fosse um só. É do primeiro que desce o Espírito de
Lincoln (que no filme seria uma espécie de Deus) para impulsionar Smith, para
que este varra do templo sagrado (o Capitólio) os maculadores da ordem e da
justiça. Lincoln seria Deus. Smith seu imaculado filho. Nessa qualidade ele
enfrenta uma via crucis semelhante a de outros “Cristos” do diretor. Tentando
desbaratar a rede de corrupção, o mesmo é acusado de tentar roubar o dinheiro
das crianças da América com um projeto que visava valorizar uma área que
estaria no seu nome. Smith aproveita uma brecha no regimento do senado para
discursar, por mais de 23 horas ininterruptas, tentando desesperadamente
conquistar a opinião pública. O esforço culmina num desmaio, onde ele é
socorrido pelos demais senadores. O delíquio seria o término da crucificação. O
prêmio para o seu sacrifício é a ressurreição posterior. Inconsciente (portanto
aparentemente morto) ele derrota a corrupção. Mitologia Cristã e americanismo
estão no cerne da obra Capresca.
Todas essas sequências aproximam a película do gênero dramático na
concepção hegeliana. Os personagens apresentam-se autônomos, emancipados de um
narrador (até por que a história já é conhecida), mas todos são dotados de uma
subjetividade muito rica. Paine, Sanders e Smith interiormente são indivíduos
que trazem adormecidos motivos poéticos. Smith não receia a opinião do mundo
que o cerca e revela seus ideais e modo de ser, sendo tido como simplório.
Contudo ele desperta nos que o cercam (principalmente em Paine, que outrora
fora muito semelhante a ele) sentimentos adormecidos e esquecidos. Saunder (a
secretária) revela-se uma mulher sentimental, que chega até a voltar, a ter
trejeitos de menina, tocada pelo espírito de fé na humanidade. E, mesmo o repórter, que tem como designação
cobrir o gabinete do senador, que aparece no filme como um conformista (1), diante
do estado das coisas, apagando sua desilusão em algumas garrafas de bebida, é
tomado de um novo impulso e desperta o eu que acredita, que as coisas podem ser
diferentes. Já Joseph Paine na narrativa toda, revive o calvário de
antigamente. Terá ele novamente a falta de coragem, que fez com que vendesse a
alma ao Diabo. Teríamos aqui um exemplo de um roteiro inteiramente pautado na
concepção hegeliana (2) se não levássemos em conta o narrador (3). Esse
narrador que parece inexistir, é representado pelo olhar do diretor. Nós não
olhamos diretamente para a ação que se desenrola. Existe no cinema um filtro
que inexiste no teatro. Esse filtro é representado pelo Diretor/Narrador. E nos
filmes de Capra (Assim como nos longas de Chaplin/Carlitos) esse filtro é muito
mais nítido. Para ambos, o distanciamento proposto por diretores como Rosselini
ou Bresson não é tomado como regra. Para eles o envolvimento emocional do
espectador é obrigatório. O fato de olharmos através do olhar do diretor, de
que os locais onde se passa a ação, serem distantes entre si (Montana e
Washington), descaracterizam o filme enquanto dramático, aproximando-o do
gênero épico.
Foi o diretor que decidiu escolher os momentos a serem narrados. Há várias cenas que procuram reforçar o caráter dos personagens, e que não influenciariam na totalidade, mas nesse instante parece que o narrador quer deixar seu “eu” falar (o discurso de agradecimento por ter sido escolhido como senador, ou quando pergunta pelo nome da secretária). É nesse instante que a Lírica surge na obra. Capra acreditava que o indivíduo não massificado (um nome qualquer, o nome não importa) poderia melhorar o mundo. É no interior que ele acredita existir esses personagens. É lá que ele buscará sempre um personagem para expor suas ideias. O cinema de Capra tinha um caráter todo pessoal, numa época em que o cinema de autor estava alijado da produção americana.
Foi o diretor que decidiu escolher os momentos a serem narrados. Há várias cenas que procuram reforçar o caráter dos personagens, e que não influenciariam na totalidade, mas nesse instante parece que o narrador quer deixar seu “eu” falar (o discurso de agradecimento por ter sido escolhido como senador, ou quando pergunta pelo nome da secretária). É nesse instante que a Lírica surge na obra. Capra acreditava que o indivíduo não massificado (um nome qualquer, o nome não importa) poderia melhorar o mundo. É no interior que ele acredita existir esses personagens. É lá que ele buscará sempre um personagem para expor suas ideias. O cinema de Capra tinha um caráter todo pessoal, numa época em que o cinema de autor estava alijado da produção americana.
Notas
1 – Conformista teria um significado diferente de conformado. O
conformado seria aquele que aceitas as coisas como elas são, por que as mesmas
não podem ser mudadas. O conformista não luta pelo que pode ser mudado, por que
não é incomodado por esse estado de coisas, ou por simples preguiça.
2 – O filme apresenta o tempo todo, personagens que se chocam entre si.
Desses choques nasce a ação que caminha para um desfecho. As personagens se
desvendam paulatinamente aos olhos do público. A subjetividade deles, como já
foi dito, é muito destacada.
3 – Compreendo perfeitamente que na Dramática a ação, aparenta não ser
filtrada por nenhum mediador. O filme apresentado é constituído por uma série
de diálogos, sem interferência do autor (intertítulos, datas). Existe o
desaparecimento do cenário, seria como se realmente estivéssemos vendo o Senado
e os personagens. O futuro dos personagens que não pode ser desvendado antes do
fim, a utilização do flashback evocado nos diálogos (no trem entre Joseph Paine
e Jefferson Smith) para não interromper a ação dramática (tempo linear e
sucessivo). Apesar de a história se assemelhar a de Cristo, o autor (diretor)
faz com que tudo aconteça novamente, perante os nossos olhos (Lessing).
Avaliação: 10/10
Avaliação: 10/10
Caramba, excelente texto!! Já tinha ouvido falar de algumas obras de Capra mas nunca procurei, depois deste texto, vou começar a ver os filmes deste cineasta.
ResponderExcluirJá venho há algum tempo me dedicando às obras do diretor Capra e do grande astro americano Stewart, e é simplesmente deslumbrante, pois os dois são um marco no cinema americano!
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