Creio ter sido Peter Bogdanovich que disse que todos os grandes filmes já teriam sido realizados. Poderíamos dizer então que seria necessário focar nosso interesse no lúdico e reaprender a contar a própria história sobre outro viés. Assim explorar-se-ia a capacidade que cada qual tem de contar a partir do que ele captou da própria história que de certa forma ele vive.
“Céline e Julie vão de barco” nasce do trabalho coletivo. Enquanto roteiro o filme é construído pelos atores principais em colaboração com o diretor e Eduardo de Gregório. Influência forte da literatura, sobretudo Henry James e Lewis Carrol, Céline seria o Coelho (Alice no país das maravilhas). A partir da engenhosa e lúdica perseguição a ela o filme tem início. Ela surgiu por acaso no caminho de Julie ou foi invocada a partir de um símbolo desenhado na areia (lia um livro de magia)? E paulatinamente iremos ser inseridos em uma estrutura cíclica, onde os sonhos da noite precedente servem de ponto de partida para o que está a surgir. Ficamos nós e as “heroínas” a deriva, seguindo uma trajetória incerta que remete a algo surreal nessa perseguição perseverante. Perseguição essa que é interrompida quando ela se hospeda em um hotel com o curioso nome de Céline maga. Não temos condições de compreender as razões de tal interrupção. Não conhecemos as regras desse mundo lúdico. Estamos a deriva em um mundo incompreensível. O que não significa que não tenha lá uma certa lógica.
Em “Esse obscuro objeto do desejo” duas atrizes realizam um mesmo papel, aqui também Julie e Céline trocam de papel entre si (Céline finge ser Julie diante do noivo de infância desta) e também fazem as vezes de uma babá em uma mansão misteriosa. As duas atrizes não deixam de ser dublês uma da outra e as vezes agem assim em uma mesma cena. O espectador vê uma ou outra descendo ou subindo uma escada, se colocam no meio de uma mesma ação sem que os que habitam a mansão se sintam incomodados. O filme se vale do legado do surrealismo e tal é utilizado aqui não para chocar, apenas para causar um quê de estranhamento.
Algo que certamente perturbará alguns espectadores é certa falta de lógica e de questões que ficam sem resposta: Julie é ou não enfermeira? Por qual motivo Julie tem uma foto da fachada da mansão em seu cofre? A babá que vive ao lado da mansão indica que Julie viveu lá? Julie apresenta Celine ora como sua prima, ora como sua irmã, por qual motivo? A mãe de Julie manda lembranças a Céline... Como ela sabe da existência dessa nova amiga da filha?
Algo importante na estrutura do filme é a repetição. Ele foi concebido dentro de uma estrutura cíclica, sobretudo quanto às ações que tem lugar na mansão. Os moradores de tal lugar traçam e exaustão o mesmos planos. Planos esses que são desmontados pelas heroínas.
Essas intrigas são repetidas em doses homeopáticas, se desnudando pouco a pouco diante de nossos olhos. Não é a nossa vida também uma repetição de fatos a exaustão? E não seria a arte um elemento que vem quebrar essa maldição em tornando a vida algo valioso? Quando Céline e Julie se introduzem na intriga, elas não dotam aquela existência de algo mágico modificando algo já traçado?
Creio que a grande proposta trazida por essa obra não é aparentemente dar as costas a realidade. A proposta é de modificar o status quo opondo-se ao discurso do senso comum, que esconde a face real, dissimulando a realidade. Infelizmente serão poucos os dispostos a embarcar no barco de Rivette. Não estamos preparados para navegar em rios e mares de livres associações. Estamos presos a formas, embalagens, muitas vezes nos esquecendo do conteúdo que pode ser modificado. De qualquer forma o diretor nos aponta que existe sim a possibilidade de embarcar rumo a uma nova realidade.
Avaliação: 7,5/10
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