quarta-feira, novembro 7

Crítica: Céline e Julie Vão de Barco (1973)



Creio ter sido Peter Bogdanovich que disse que todos os grandes filmes já teriam sido realizados. Poderíamos dizer então que seria necessário focar nosso interesse no lúdico e reaprender a contar a própria história sobre outro viés. Assim explorar-se-ia a capacidade que cada qual tem de contar a partir do que ele captou da própria história que de certa forma ele vive. 


“Céline e Julie vão de barco” nasce do trabalho coletivo. Enquanto roteiro o filme é construído pelos atores principais em colaboração com o diretor e Eduardo de Gregório. Influência forte da literatura, sobretudo Henry James e Lewis Carrol, Céline seria o Coelho (Alice no país das maravilhas). A partir da engenhosa e lúdica perseguição a ela o filme tem início. Ela surgiu por acaso no caminho de Julie ou foi invocada a partir de um símbolo desenhado na areia (lia um livro de magia)? E paulatinamente iremos ser inseridos em uma estrutura cíclica, onde os sonhos da noite precedente servem de ponto de partida para o que está a surgir. Ficamos nós e as “heroínas” a deriva, seguindo uma trajetória incerta que remete a algo surreal nessa perseguição perseverante. Perseguição essa que é interrompida quando ela se hospeda em um hotel com o curioso nome de Céline maga. Não temos condições de compreender as razões de tal interrupção. Não conhecemos as regras desse mundo lúdico. Estamos a deriva em um mundo incompreensível. O que não significa que não tenha lá uma certa lógica. 

Em “Esse obscuro objeto do desejo” duas atrizes realizam um mesmo papel, aqui também Julie e Céline trocam de papel entre si (Céline finge ser Julie diante do noivo de infância desta) e também fazem as vezes de uma babá em uma mansão misteriosa. As duas atrizes não deixam de ser dublês uma da outra e as vezes agem assim em uma mesma cena. O espectador vê uma ou outra descendo ou subindo uma escada, se colocam no meio de uma mesma ação sem que os que habitam a mansão se sintam incomodados. O filme se vale do legado do surrealismo e tal é utilizado aqui não para chocar, apenas para causar um quê de estranhamento. 

Algo que certamente perturbará alguns espectadores é certa falta de lógica e de questões que ficam sem resposta: Julie é ou não enfermeira? Por qual motivo Julie tem uma foto da fachada da mansão em seu cofre? A babá que vive ao lado da mansão indica que Julie viveu lá? Julie apresenta Celine ora como sua prima, ora como sua irmã, por qual motivo? A mãe de Julie manda lembranças a Céline... Como ela sabe da existência dessa nova amiga da filha? 

Algo importante na estrutura do filme é a repetição. Ele foi concebido dentro de uma estrutura cíclica, sobretudo quanto às ações que tem lugar na mansão. Os moradores de tal lugar traçam e exaustão o mesmos planos. Planos esses que são desmontados pelas heroínas. 

Essas intrigas são repetidas em doses homeopáticas, se desnudando pouco a pouco diante de nossos olhos. Não é a nossa vida também uma repetição de fatos a exaustão? E não seria a arte um elemento que vem quebrar essa maldição em tornando a vida algo valioso? Quando Céline e Julie se introduzem na intriga, elas não dotam aquela existência de algo mágico modificando algo já traçado? 

Creio que a grande proposta trazida por essa obra não é aparentemente dar as costas a realidade. A proposta é de modificar o status quo opondo-se ao discurso do senso comum, que esconde a face real, dissimulando a realidade. Infelizmente serão poucos os dispostos a embarcar no barco de Rivette. Não estamos preparados para navegar em rios e mares de livres associações. Estamos presos a formas, embalagens, muitas vezes nos esquecendo do conteúdo que pode ser modificado. De qualquer forma o diretor nos aponta que existe sim a possibilidade de embarcar rumo a uma nova realidade. 


Avaliação: 7,5/10

 

    


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