Por Maurício Owada
"A vontade do homem e a vontade de Deus"
A polêmica acerca de um trabalho que remete a Bíblia iniciou não através do fato de ser uma releitura, mas sim pelo fato de Darren Aronofsky ser o idealizador disso (baseado em um poema feito quando criança), o que levou as pessoas a acreditarem que a história de Noé tomaria um tratamento diferente, senão totalmente oposta do que a mensagem da Bíblia passa. Assim como Martin Scorsese colocou com maturidade em A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988), aonde um Jesus ficava dividido entre a alma do Messias e a carne na Terra que ansiava os prazeres das pessoas comuns, sejam carnais ou espirituais (que causa uma grande e interessantíssima discussão de nós acerca da espiritualidade e do corpo), aqui a missão é de um homem comum que lida com decisões importantes e de grandes consequências, para levar adiante a vontade do Criador (jamais mencionado como Deus) de se fazer uma arca para fazer sobreviver todas as espécies da Terra para o Dilúvio vir, "limpar" e dar espaço para um recomeço.
Aronofsky trás a tona detalhes que são pouco detalhados na Bíblia ou na forma como é nos contada (não sou grande conhecedor das antigas escrituras, só pra ficar claro qualquer ignorância do que recitarei), como um mundo verdadeiramente violento, aonde existe um rei, mas seu discurso de livre-arbítrio toma um rumo interessante, ainda que pouco discutida ou aprofundada, apenas solta nas palavras do vilão Tubalcaim (Ray Winstone), que vem da linhagem de Caim, que o põe como contra-ponto de Noé (Russell Crowe), da linhagem de Set (o outro filho de Adão e Eva). O mundo aonde a vontade do homem é a lei remete a uma sociedade anárquica (não confundir com anarquismo), levando a um caos profundo, aonde o egoísmo e a ambição falam mais alto. É essa reciprocidade de convivência que falta ao mundo que leva Noé a ser um homem praticamente refugiado da civilização, pela incompatibilidade com a desgraça acerca do que o ser humano comete.
Ateu, Aronofsky trata a história do Dilúvio como uma mitologia do modo como certos elementos que são alterados, como os anjos-caídos serem os guardiões, banidos na Terra, que se transformou num inferno (estão disponibilizadas interpretações infinitas, fiquem à vontade!) por ajudarem os humanos na construção da civilização e depois caçados por aqueles que ajudaram, que lembra Prometeu, banido por Zeus a ficar amarrado numa rocha por toda a eternidade, enquanto uma águia devorava seu fígado todos os dias, que regenerava para ser devorado novamente, numa dor eterna, por roubar o fogo do Deus do Olimpo e ter dado a humanidade, e são essas releituras de certos aspectos culturais influenciadas por outras que leva o filme a uma expansão mais universal, até quando se aborda a questão da presença maior do Criador aos humanos, quando Noé fala da criação e na tela, transparece (num exercício totalmente visual e belíssimo, típico de seus filmes com virtuosismos técnicos como frames rápidos para contar algo extenso em segundos) o Big Bang até a evolução das espécies, mostrando que ciência e religião são apenas dois meios diferentes de se contar uma mesma história. Não é a busca de uma releitura que cause polêmica que Darren Aronofsky trás, mas sim uma releitura que nos faça refletir sobre nossa própria cultura judaico-cristã, embutidas nas escrituras sagradas ocidentais, ainda que dialogue mais com o Ocidente todos os elementos presentes, inseridos ou modificados.
Mas a grande mensagem é a humanidade, como a forma de nos manifestarmos como uma espécie que carrega a alma, que possui a vontade e o próprio para caminhar, que contradiz com o argumento de que tudo está escrito ou destinado, Noé carrega tudo isso e fazê-lo passar por um homem que mataria uma criança para não falhar com Ele põe uma profundidade enorme sobre a vontade de Deus e a vontade do homem, que sempre entrará em conflito, pois as ânsias dos seres humanos vai além da plenitude espiritual, independente da religião, já que o budismo também prega isso. O que move o homem? O dever ou a consciência? Ou uma leva a outra? Seria Ele falando conosco através de sinais ou nós interpretamos tudo nas entrelinhas? A manifestação do Criador através de sonhos e da natureza tira a voz grossa e austera de outros filmes para algo além da matéria e da alma. Mas a concepção dele também é questionada, deixando a dúvida de que modo podemos representá-lo. Dentro da diegese do filme, Deus existe, mas o tom bastante fantasioso que o diretor emprega põe a religião como algo que poderá se transformar em mitologia.
Atingindo um público consideravelmente amplo para um tema delicado, levando em conta as crenças do mundo de hoje, aonde o fundamentalismo anda mais presente devido ao mundo de hoje, que independente de crer ou não, está mais violento (ou ela está maior divulgada? O mundo está mais aberto para as coisas ruins afora?), levando pessoas a acreditarem em discursos quase sensacionalistas, prevendo o apocalipse de forma catártica contra a corrupção dos seres humanos, um novo Dilúvio. Mas se você percebeu várias interrogações neste texto ou afirmações duvidosas, pare para pensar que tanto este texto redigido, assim como uma escritura que carrega uma fonte inesgotável para diversas culturas do mundo, já que a Bíblia não é a única que manifesta uma crença, mas também o Alcorão, o Torá etc, ambos são letras e palavras combinadas que passam uma tese, um manifesto, uma opinião ou um questionamento, que podem sim, de toda forma, serem questionadas, independente de sua importância na religião e na história, escritas por homens. Concorda?
*Não se pode esquecer o grande desempenho do elenco, não apenas o protagonista, mas também os coadjuvantes formados por Jennifer Connely, Emma Watson, Anthony Hopkins, Logan Lerman e outros. Não entrou no texto "oficial" devido ao conteúdo que abordava mais a discussão que a obra trazia. Além da genial trilha-sonora de Clint Mansell que trás algo antigo e o revisita em faixas belíssimas para o filme, que lembra também a beleza de Peter Gabriel em A Última Tentação de Cristo.
Nota: 8,0/10,0
Trailer:
Gostei de sua comparação entre a obra de Scorsese (amo o filme A Últma Tentação de Cristo) e o trabalho de Aronofsky. Um amigo que se diz mais cinéfilo que qualquer um desceu a lenha no filme, o que me deixou intrigado....porém, dele em diante tenho lido muitas críticas positivas.
ResponderExcluirabs
Acho que a opinião acerca desse filme, seja negativa ou positiva, conseguem ser em diversas amplitudes, algumas razões ou motivos são relacionados a qualidade ou falta dela, mas depende da opinião de cada um...
ExcluirAcredito que esse filme é mais um dentro da tática dessa última década voltada pra vender...
ResponderExcluirEncontraram um grande potencial no mercado "gospel" onde a música e a televisão já estão explorando e um tema bíblico para um filme certamente levaria uma multidão de pessoas que não tem costume de ir ao cinema, mas que sairiam de suas casas para contemplar o tema, mesmo que por curiosidade já que, por não ser fiel as escrituras, decepcionou essa gente.
Enfim, pra mim tudo sempre foi e sempre será o mercado.
Mas senão for mercado também, como o filme suprirá todos os gastos da produção? Ainda mais quando se vende em Hollywood e talvez o tema em ascenção no mercado fosse o que fizeram os executivos a financiar o filme e Aronofsky a abranger um grande público com um filme que foge da escritura. E cinema sempre será mercado, ainda mais o cinema americano, mas dentro dela sempre haverá filmes que fujam do formato e da narrativa de mercado. Esse é um baita exemplo.
Excluir