sexta-feira, agosto 16

Crítica: Era Uma Vez Em... Hollywood (2019)



Por Maurício Owada

Uma Hollywood que está na memória e nos anseios

Quentin Tarantino sempre demonstrou seu carinho com o cinema expresso em sua filmografia - em cada frame, havia uma homenagem, uma referência e a constatação de mais um filme que conhecíamos entre tantos dos quais ele tanto apreciava. A variedade de gêneros, produções e países era imensa. Do cinema japonês logo para o cinema italiano de Leone, para um plano que relembrava um clássico francês para uma produção B e exploitations... e por aí vai. Esse sempre foi o que nos acostumamos a ver do processo criativo do cineasta até mais ou menos, Django Livre (Django Unchained, 2013).

Apesar dos filmes do Tarantino sempre terem evocado propostas de narrativas diferentes durante o decorrer da carreira, sempre havia uma certa expectativa básica de seus filmes - o plano dos porta-malas, músicas sessentistas e setentistas embalando a trilha sonora, uma violência chocante e gráfica na medida da comédia e do suspense. Mas desde Os Oitos Odiados (The Hateful Eight, 2015), vem quebrando alguns desses códigos, que se desenvolve narrativamente como uma peça de teatro, além de ter explorado o gênero por matrizes diferenciadas - a opção por uma narrativa de thriller e o filme quase todo num cenário só. 

Em Era Uma Vez em... Hollywood (Once Upon a Time in... Hollywood, 2019), Tarantino segue essa linha de não trazer o que tornou seus filmes familiar nos últimos quase 30 anos. A maturidade tanto no roteiro quanto na direção da câmera e seus atores faz o cineasta se aproximar mais ainda daqueles que aprendeu a admirar - na cena do duelo entre Cliff Booth (Brad Pitt) e Bruce Lee (Mike Moh), por exemplo, as mudanças de plano são delineadas pela movimentação da câmera, tão comum nos trabalhos de Akira Kurosawa e Steven Spielberg.

Como um filme metalinguístico, ele se rende a um pouco da auto-referência - entre considerar o ego do cineasta ou entendê-lo a partir de suas inspirações, fica a cargo do público - mas também serve como exercício de linguagem onde ele imerge na narrativa de um seriado em que Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) atua como se estivéssemos assistindo, para mais tarde interromper porque o ator esqueceu as falas e retomar toda a movimentação de câmera de onde começou.

Mas diante de um retrato fiel de uma época saudosa e de transição da indústria hollywoodiana (a recriação de época através dos televisores passando seriados, cinemas projetando filmes em película, letreiros luminosos e garrafais e as publicidades constantes de cigarros), busca-se o retrato do espírito desta época em um olhar contemplativo de memórias nostálgicas de quem não as viveu - fator essencial em entender como a narrativa prossegue e para qual momento específico a narrativa se bifurca - e a construção de uma Margot Robbie angelical se torna essencial para sua Sharon Tate. É claro que o cineasta faz rir do/com seus personagens principais, mas também lhes dá contorno de humanidade que transfere a eles algo pouco comum na filmografia de Tarantino - como dissera Pablo Villaça na sua cobertura em Cannes, fica perceptível o carinho do cineasta com aqueles personagens e Sharon Tate parece ser mais um produto da imaginação do cineasta baseado nas curiosidades e relatos dos bastidores das celebridades do que o retrato fiel em si da atriz cuja vida e carreira foi interrompida de forma cruel.

Mas o filme não é perfeito - o ritmo deliberado é percebido pelo público até entender o objetivo da narrativa e o foco no desenvolvimento dos personagens que não se sustenta em um grande plot de vingança. A referência de feminicídio como piada dentro da história de um dos personagens soa inadequado numa época depois do MeToo, das acusações e prisão do produtor com quem trabalhou desde o começo por assédio e abuso sexual e até de relatos de Uma Thurman de abuso psicológico por parte do próprio cineasta - uma discussão fora do campo da ficção (que já se envolve no evento acerca de Sharon Tate), mas difícil de desvincular quando não se concorda com a ideia de separação entre obra e autor.

O elenco em si é um deleite - Leonardo DiCaprio demonstra cada vez mais sua grande capacidade como ator (independente dos esforços hercúleos de nadar em águas congelantes), principalmente quando explora seu lado cômico como fizera em O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2015), juntamente com Brad Pitt como seu fiel dublê que evoca mistério e uma certa ambiguidade moral típica de um Clint Eastwood na Trilogia dos Dólares, além da própria Margot Robbie que aquece o coração do espectador diante da visão pueril das memórias de um jovem adolescente que se tornou um cineasta maduro.

Era Uma Vez em... Hollywood relembra, ficcionaliza e homenageia um período histórico da indústria cinematográfica americana que ficou no fundo da memória de um Quentin Tarantino menino e maduro, embalado por uma nostalgia do que não viveu, como um sonho bom - sobre a indústria de sonhos, na cidade dos sonhos - que o guarda dentro de uma caixinha e a protege de qualquer mal que o ronde e o corrompa. 

Nota: 8,0/10,0





Trailer:

sábado, agosto 3

Crítica: Quando Explode a Vingança (1971)


Por Maurício Owada


"Qual o significado das revoluções?"


A revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado, ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. 
A revolução é um ato de violência.
Mao Tse Tung 

Um questionamento que sempre surge quando falamos de revoluções é: "para onde nos levarão?" Porque dentro do processo histórico, quando o povo se vê em detrimento dos interesses meramente pessoais de seus tiranos, organicamente, é muito normal que pessoas levadas por movimentos revolucionários se levantem contra a estrutura de poder que oprime elas em diversas esferas.

Ainda que em seu estilo que mistura cenas de uma dramaticidade operística ou momentos engraçados, como já fizera em seus outros faroestes que moldaram sua carreira, Sergio Leone traz consigo um dos seus filmes mais maduros - Era Uma Vez no Oeste (C'era Una Volta il West, 1968) já deixava isso claro quanto a construção e desconstrução do gênero - mas aqui, o discurso político é presente na história dos dois personagens: Juan Miranda, um bandido mexicano interpretado por Rod Steiger e Sean Mallory, um ex-guerrilheiro irlandês vivido por James Coburn.

Se este texto soar mais como reflexão dos temas que Leone aborda do que uma crítica em si, fiquem a vontade. Mas é bom lembrar como Leone sempre teve um jeito muito peculiar de contar histórias, seja uma sequência inteira sem diálogos onde tudo é dito pelos olhares dos personagens e pela trilha sonora sempre majestosa e brilhante de Ennio Morricone. E como isso é muito importante no modo como o cineasta não só é genial na criação do suspense, mas da imersão emocional do espectador para com seus personagens - desde Por Uns Dólares a Mais (Per Qualche Dollaro in Più, 1965), tanto o roteiro quanto a execução dos elementos diegéticos e extra-diegéticos sempre apontam cada vez mais no desenvolvimento dos personagens e na criação de uma empatia com cada um deles cada vez mais forte, conforme Sergio Leone vai fazendo seus filmes.

E esta empatia com os personagens tanto de Juan e Sean vem no contexto da Revolução Mexicana. Ambos homens, clandestinos por onde andam e da terra que lhes deveria servir de acolhimento - um bandido que não acredita nos ideais revolucionários e outro, um perito em explosivos que precisou fugir da Irlanda perseguido por ter seguido a luta armada pelo seu país. E claramente, vemos a construção dos vilões - o exército de Porfírio Diaz quase lembra os fascistas italianos (talvez pelos traços dos atores latino-europeus vivendo latino-americanos, como era comum no casting dos filmes de Leone) - em sua total brutalidade como braços de um Estado repressor. Mas o filme não cai na armadilha de ser sério demais, como é comum nos filmes políticos e é sempre interessante pensar que cineastas aclamados traziam ao processo da narrativa, um pouco de humor - como na cena inicial em que Juan adentra a uma diligência cheia de passageiros burgueses e é constantemente humilhado por aqueles personagens, o chamando de animal, quando temos planos detalhes de suas bocas comendo enquanto riem e debocham numa montagem sensacional de Nino Baragli, numa subversão irônica do discurso daqueles personagens que já aprendemos a odiá-los.

Apesar de ser o seu filme mais político (inserido numa trilogia cuja importância maior já não era mais a representação de um gênero americano pelo estilo italiano, mas a representação da história pelo olhar do cineasta italiano), Leone deixara claro numa entrevista que a Revolução Mexicana no filme era mais um símbolo do que uma representação do real e que seu verdadeiro tema central na verdade era a amizade. E apesar da legenda dura e agressiva que surge no começo do filme, Leone sempre se opõe a ideia do imaginário idealista das revoluções e Juan, diante de sua postura amoral em que partiu pra vida de crimes e acaba aceitando ser parte daquela luta contra a opressão por dinheiro, discursa contra essa fantasia que repercute acerca desses movimentos históricos: tirar aqueles que bebem e dormem no conforto enquanto outros vivem na pobreza para colocar outros que irão beber e dormir no conforto - para logo depois, Sean jogar o livro de Bakunin na lama.

Quando Explode a Vingança (Duck, You Sucker/A Fistful of Dynamite, 1971) é talvez o seu filme menos conhecido, mas talvez pelo apelo do título inusitado, deixe o espectador desarmado pelo seu tom meio debochado e cômico para cenas mais dramáticas e sombrias. Uma das últimas empreitadas de Leone ao gênero faroeste (ele ainda co-dirigiria Trinity e Seus Companheiros, filmando apenas a introdução) para depois, partir para o gênero gângster em Era Uma Vez na América (Once Upon a Time in America, 1985).

E o que fica no final do filme é a pergunta: para onde vou? Depois da vitória, de derrubarmos nossos algozes, a pergunta que fica estampada no rosto em close de Rod Steiger nos deixa desamparados, já que ele corta secamente para o título inusitado que significa "vai se ferrar, idiota!". Enquanto até Era Uma Vez no Oeste, seus protagonistas seguiam seus rumos incertos mas decididos a não ficar, o personagem de Rod Steiger fica desamparado, num grande close, encarando a câmera, interrogativo ao que fazer depois da vitória, já que o processo dos eventos históricos levem aqueles que não protagonizam seus acontecimentos ao mesmo lugar de sempre - e as mudanças se seguem irrelevantes nas suas vidas. Cínico? Talvez sim. Mas acho que é porque é assim mesmo.

Nota: 8.5/10.0




Trailer:

terça-feira, janeiro 22

Oscar 2019 - conheça os indicados em todas as categorias

O Oscar 2019 acontecerá dia 24 de fevereiro, e a cerimônia, ao que parece, será bem competitiva. Confira aos indicados em todas as categorias deste ano.

Melhor Filme:

Pantera Negra

Infiltrado na Klan

Bohemian Rhapsody

A Favorita 

Green Book – O Guia

Roma

Nasce uma Estrela

Vice 
  

Melhor Atriz:

Yalitza Aparicio, Roma

Glenn Close, A Esposa

Olivia Colman, A Favorita

Lady Gaga, Nasce uma Estrela

Melissa McCarthy, Poderia me Perdoar?


Melhor Ator:

Christian Bale, Vice

Bradley Cooper, Nasce uma Estrela

Willem Dafoe, No Portal da Eternidade

Rami Malek, Bohemian Rhapsody

Viggo Mortensen, Green Book – O Guia


Melhor Atriz Coadjuvante:

Emma Stone, A Favorita

Rachel Weisz, A Favorita

Marina De Tavira, Roma

Regina King, Se a Rua Beale Falasse

Amy Adams, Vice


Melhor Ator Coadjuvante:

Mahershala Ali, Green Book – O Guia

Adam Driver, Infiltrado na Klan

Sam Elliott, Nasce Uma Estrela

Richard E. Grant, Poderia me Perdoar?

Sam Rockwell, Vice


Melhor Direção:

Spike Lee, Infiltrado na Klan

Pawel Pawikowski, Guerra Fria

Yorgos Lanthimos, A Favorita

Alfonso Cuarón, Roma

Adam McKay, Vice


Melhor Roteiro Adaptado:

A Balada de Buster Scruggs

Infiltrado na Klan

Poderia me Perdoar?

Se a Rua Beale Falasse

Nasce uma Estrela


Melhor Roteiro Original:

A Favorita

No Coração da Escuridão

Green Book – O Guia

Roma

Vice


Melhor Filme em Língua Estrangeira:

Roma

Cafarnaum

Guerra Fria

Assunto de Família

Nunca Deixe de Lembrar


Melhor Curta de animação:

Animal Behaviour

Bao

Late Afternoon

One Small Step

Weekends


Melhor Curta-metragem:

Detainment

Fauve

Marguerite

Mother

Skin


Melhor Figurino:

A Balada de Buster Scruggs

Pantera Negra

A Favorita

O Retorno de Mary Poppins

Duas Rainhas


Melhor Mixagem de Som:

Pantera Negra

Bohemian Rhapsody

O Primeiro Homem

Roma

Nasce uma Estrela


Melhor Edição de Som:

Pantera Negra

Bohemian Rhapsody

O Primeiro Homem

Um Lugar Silencioso

Roma


Trilha Sonora Original:

Pantera Negra

Infiltrado na Klan

Se a Rua Beale Falasse

Ilha dos Cachorros

O Retorno de Mary Poppins


Edição:

Infiltrado na Klan

Bohemian Rhapsody

A Favorita

Green Book – O Guia

Vice


Documentário em curta-metragem:

Black Sheep

End Game

Lifeboat

A Night at the Garden

Period. End of Sentence.


Documentário:

Free Solo

Hale County: This Morning, This Evening

Minding the Gap

Of Fathers and Sons

RBG


Direção de Arte:

Pantera Negra

A Favorita

O Primeiro Homem

O Retorno de Mary Poppins

Roma


Fotografia:

Guerra Fria

A Favorita

Nunca Deixa de Lembrar

Roma

Nasce uma Estrela


Efeitos Visuais:

Vingadores: Guerra Infinita

Christopher Robin – Um Reencontro Inesquecível

O Primeiro Homem

Jogador nº 1

Han Solo – Uma História Star Wars


Maquiagem e Cabelo:

Border

Duas Rainhas

Vice


Melhor Animação:

Os Incríveis 2

Ilha dos Cachorros

Mirai

WiFi Ralph: Quebrando a Internet

Homem-Aranha no Aranhaverso


Canção Original:

All the Stars, Pantera Negra

I’ll Fight, RBG

The Place Where Lost Things Go, O Retorno de Mary Poppins

Shallow, Nasce uma Estrela

When a Cowboy Trades his Spurs for Wings, The Ballad of Buster Scruggs

domingo, abril 30

9 filmes selecionados: sobre o Novo Cinema Brasileiro

Por Wendell Marcel

Falar de um Novo Cinema Brasileiro é selecionar filmes que representam um olhar e uma estética cinematográfica sobre as questões contemporâneas. São obras que falam do Brasil, do povo, dos problemas sociais e econômicos, da verticalidade das cidades, das relações humanas e das subjetividades. O E Aí, Cinéfilo, Cadê Você? apresenta nove filmes brasileiros recentes que congregam novas narrativas, novas representações e novos olhares de um cinema autoral e político, sensível e poético. 


9. O Homem das Multidões, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães (2013)



8. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (2015) 



 7. Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (2015)



 6. Praia do Futuro, de Karim Ainouz (2014)



 5. Eles Voltam, de Marcelo Lordello (2012)



 4. Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, de Petrus Cariry (2015)



 3. Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós (2015)



2. Campo Grande, de Sandra Kogut (2015)



 1. Brasil S/A, de Marcelo Pedroso (2014)

sábado, agosto 29

Crítica: Apocalypse Now (1979)



Por Kaio Feliphe


"A loucura de Coppola originou um dos maiores filmes de todos os tempos."


O texto a seguir contém spoilers
Aconselha-se a leitura apenas para quem viu o filme.

“Meu filme não é um filme. Meu filme não é sobre o Vietnã, ele é o Vietnã. É como foi. Uma loucura. E nós o fizemos do modo como os americanos estavam no Vietnã. Estávamos na selva, éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento. E pouco a pouco, ficamos loucos.”
Francis Ford Coppola, Festival de Cannes 1979

Foi assim que Coppola definiu Apocalypse Now [Apocalypse Now, 1979]. Um filme que transcende os rolos de 65 mm e retrata a completa insanidade que foi a Guerra do Vietnã.

Levemente baseado na obra de Joseph Conrad, Heart of Darkness, o filme conta a história do Capitão Willard (Martin Sheen), que recebe uma missão de ir aos confins do Camboja para assassinar o Coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando), que teria ficado louco e comandava como bem entendia sua tropa, não respeitando as ordens do exército americano.

Só que Apocalypse Now não é exatamente sobre a guerra do Vietnã, mas sim sobre a mente humana. Como o próprio General Corman diz ao entregar a missão a Willard, todo homem tem o seu ponto de ruptura (seu breaking point), onde ele simplesmente perde o controle de sua própria mente. E na viagem de Willard rio acima para encontrar Kurtz, vemos vários desses homens que já ultrapassaram seu breaking point, e estão completamente fora de si.

Na primeira parada, Willard e seus soldados encontram o Tenente Kilgore (Robert Duvall), nome que brinca com as palavras kill e gore, já indicando a sua natureza. Nela, Willard vê a primeira das insanidades da guerra do Vietnã. Kilgore e sua tropa desumanizam completamente os vietcongues. Não mostram empatia, compaixão ou qualquer outra coisa; eles simplesmente os matam.

A grande ironia é que Kilgore se vê como um salvador. Em vários momentos vemos helicópteros e caminhões levando mulheres e crianças feridas. Na cabeça de Kilgore, seus soldados estão fazendo o bem, eliminando o inimigo; só que, ironicamente, eles são a causa de todo aquele caos.

Coppola ressalta isso no lindo segmento da Cavalgada das Valquírias. No meio da sequência dos helicópteros em formação indo ao ataque, Coppola joga algumas cenas do vilarejo que vai ser atacado. Mulheres sentadas fazendo cestas artesanais e crianças que, aparentemente, voltavam da escola. Kilgore tenta protegê-los atacando com bombas de napalm. A loucura se completa quando ele se “recompensa” surfando. É por isso que Kilgore luta, pelo amor ao combate, à carnificina e pela recompensa.

O cheiro da gasolina era cheiro de vitória. Não achar nenhum maldito corpo era um troféu para ele. E, com um tom nostálgico, completa que um dia a guerra vai acabar.
"Eu amo o cheiro de napalm pela manhã. Uma vez, nós bombardeamos uma colina por 12 horas. Quando acabou eu fui lá dar uma olhada. Eu não achei nenhum maldito vietcongue. Mas o cheiro, sabe? O cheiro de gasolina, por toda a colina... Cheirava a... vitória. Um dia essa guerra vai acabar."
A segunda parada de Willard é numa estação do exército onde irá acontecer um show das coelhinhas da Playboy. O local é como um oásis para aqueles soldados onde, por alguns minutos, eles poderiam matar a saudade de casa. Só que eles acabam atacando as próprias coelhinhas. Seu desejo de voltar para casa, sair daquele inferno era tão grande que se chegou ao ponto de atacar inocentes americanos. Não havia mais a distinção, era cada um por si.

Até aqui Willard tinha mostrado poucas expressões de emoção. Só que, ao pedir a um comandante daquele local um pouco de combustível e ele, amigavelmente, tenta explicar que era um dia muito movimentado com muitos barcos, Willard, em seu primeiro momento de expressão, tenta agredi-lo. Willard estava disposto a encontrar Kurtz, e nada poderia atrasá-lo.

O próximo ponto é a ponte Do Long. Um dos pontos mais perigosos e a divisa entre o Vietnã e o Camboja. Soldados carregando malas e pedindo para irem embora, atirando nos vietcongues tentando proteger a ponte que é construída e destruída num ciclo doentio, completamente afetados mentalmente. Willard vaga por esse ambiente psicodélico, sabendo que todos aqueles estão fadados à loucura.

A última parada do barco é na fazenda dos franceses. A sequência que só é vista na versão Redux de 2001 é sublime. Ao chegar perto da fazenda, uma cortina de fumaça encobre o barco. Num ambiente quase onírico, Willard se junta aos franceses para jantar e passar a noite. 
“Vocês estão lutando pelo maior nada da história!”
É assim que um dos franceses definiu a Guerra do Vietnã. E como não concordar? Soldados, onde muitos são apenas adolescentes (Clean, personagem do na época jovem Laurence Fishburne, tinha apenas 17 anos), são mandados para longe de casa para enfrentar o “inimigo” por simplesmente nada. E a frase ganha mais força depois do que vimos até aqui. Uma sucessão de insanidades por nada.

“(...)
Aqueles que passaram
De olhos diretos, para o outro Reino da morte
Recordem-nos - se de todo - não como almas
Perdidas e violentas, mas apenas
Como os homens ocos
E empalhados.”
Trecho de The Hollow Men, poema do escritor americano T.S. Eliot

Por fim, Willard encontra o esconderijo de Kurtz. Um lugar que destoa de todo o resto do mundo. Um reino em que o ser humano vive como se nunca tivesse existido qualquer tipo de civilização. Animal, no sentido mais bruto da palavra. Willard volta ao passado viajando rio acima e, pouco a pouco, vai se tornando o próprio Kurtz.

No começo do filme, Willard é um homem oco. A guerra sugou completamente a sua vida, a sua sanidade. A cena de abertura, com o rosto de Martin Sheen sobreposto por explosões de napalm na selva do Vietnã é o retrato de sua mente perturbada. Willard não pertence mais a sociedade; ventiladores são helicópteros de guerra, qualquer barulho no meio da madrugada é alguém tentando matá-lo, e sua segurança é uma arma debaixo de seu travesseiro. Após receber sua missão, Willard é empalhado gradativamente. Sua mente vai cada vez se tornando mais parecida com a de Kurtz e, só após passar pelo reino da morte, Willard chega ao seu destino.

Apocalypse Now é um monumento. O auge artístico e criativo de Coppola e da Nova Hollywood. Uma experiência cinematográfica tão poderosa que o próprio Coppola quase foi a loucura (ou foi) durante a sua realização. Uma obra que transcende qualquer barreira e finca a sua mensagem na mente de qualquer um que, de alguma maneira, se envolveu nela; seja dirigindo, atuando, escrevendo ou assistindo. Com certeza, uma das maiores realizações artísticas da humanidade.

Nota: 10.0/10.0








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sábado, junho 20

Crítica: Corrente do Mal (2014)


Por Kaio Feliphe

"Bom exemplo de como se fazer terror."

Infelizmente, o cinema de terror norte-americano (principalmente o mainstream) dos últimos anos se tornou um cinema comum, monótono. Os filmes lançados sempre têm a sua oferta de terror baseada em sustos baratos e previsíveis. Não se cria um clima de tensão, uma atmosfera que deixa o espectador apreensivo; os diretores sempre apelam para jump scares que não assustam mais ninguém.

Só que de vez em quando aparece um filme como Corrente do Mal [It Follows, 2014], que fundamenta seu terror na atmosfera. Atmosfera essa que é bem semelhante aos clássicos setentistas e oitentistas do gênero, como Halloween – A Noite do Terror [Halloween, 1978] e A Hora do Pesadelo [A Nightmare on Elm Street, 1984]. O subúrbio de uma cidade grande, um grupo de adolescentes, a câmera voyeurística passeando pela vizinhança e a trilha-sonora (maravilhosa, por sinal) que contribui na criação do clima.

David Robert Mitchell, diretor do longa, cria seu filme a partir de uma premissa interessante. Uma entidade paranormal te persegue e, para se livrar dela, precisa transmitir sua maldição para outra pessoa, transando com ela. Muito se fala de que essa premissa é uma alegoria às DST (doenças sexualmente transmissíveis). Pode até fazer sentido, mas não é a ideia central. O sexo é um elemento clássico do cinema de horror. A imagem do ato carnal é parte intrínseca da estética do gênero, tanto que grandes momentos do terror são cercados pelo sexo, como em O Bebê de Rosemary [Rosemary's Baby, 1968] e A Morte do Demônio [Evil Dead, 1981], por exemplo.

Mas diferente de outros filmes, Corrente do Mal não se dedica ao visual, à imagem. Nem do sexo e nem das mortes. O que interessa é o resto, o que leva a tais circunstâncias. A fuga da maldição e a relação que se cria entre os personagens. Aliás, é bem interessante a interação entre os personagens durante todo o filme. Parece que Detroit é uma cidade fantasma que tem apenas os amigos como habitantes. Isso fortalece o clima onírico que o filme apresenta.

O horror propriamente dito da obra é muito bem construído. A grande ameaça é um ser que te persegue para sempre e apenas caminha, lentamente. Imagina, estar em qualquer lugar do planeta e mesmo assim saber que tem algo que, vagarosamente, caminha em sua direção para te matar. E aliado a isso, você, o amaldiçoado, é o único que pode ver a tal criatura. É uma ideia bastante aterrorizante e bem aproveitada por Mitchell. Por exemplo, o grande momento do filme é a cena na praia, onde os cinco amigos estão sentados e, nas costas da personagem principal, aparece alguém caminhando no horizonte em direção a ela. Como nenhum dos outros podem enxergar a criatura, o espectador é o único que vê e sabe que o perigo se aproxima. Esse momento hitchcockiano de usar o espectador como testemunha dos eventos do filme é um achado, uma das melhores cenas do gênero dos últimos anos.

Porém, a narrativa do filme talvez seja o seu ponto negativo. Mitchell trabalha o longa sem um clímax, um pico de adrenalina e tensão no espectador. O diretor tenta criar um ritmo constante de tensão, sem grandes variações. O problema é que não se consegue instituir esse clima contínuo. A cadência do filme é um pouco irregular, principalmente no segundo ato, onde há um flerte com o road movie.

O final de Corrente do Mal pode ser visto também como um esboço da vida sexual de um jovem. É muito fácil se identificar com Paul. O moço tímido que é apaixonado por Jay e que chega ao ponto de arriscar a ser morto por um fantasma só para ter um momento amoroso com ela. Uma bela analogia sobre o quão aterrorizante o sexo pode ser para um adolescente.

Corrente do Mal é um pequeno diferencial no marasmo do terror americano. No meio de remakes e filmes pouco originais, o novo trabalho de David Robert Mitchell leva o espectador ao verdadeiro terror. O terror atmosférico, onde todos os elementos fílmicos contribuem para a construção climática. E é esse terror que realmente deixa o espectador envolvido. Será que vão demorar pra aprender isso?

Nota: 7.5/10.0




Trailer:


sábado, março 21

9 filmes selecionados: sobre Guerra

Por Kaio Feliphe

“- Ain't war hell?”
Fala de um personagem no filme Nascido Para Matar

Desde os seus primórdios, o ser humano está em guerra. Combates por territórios, por influência política, por ideologias... Vários foram os motivos para que algum embate bélico acontecesse.

Só que a guerra não acarreta apenas danos materiais aos povos envolvidos, seus soldados são completamente afetados pelo inferno psicológico que é um campo de batalha.

E o cinema sempre mostrou, de variadas formas, os efeitos catastróficos da guerra no ser humano. Desta forma, o E Aí, Cinéfilo, Cadê Você escolheu nove filmes que retratam o horror que é a guerra e que, infelizmente, é tão inerente à raça humana.

 9.  Pecados de Guerra, de Brian de Palma (1989)

8. Mortos que Caminham, de Samuel Fuller (1962)

7. Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow (2008)

6. Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood (2006)

5. Nascido para Matar, de Stanley Kubrick (1987)

4. Noite e Neblina, de Alain Resnais (1955)

3. Lawrence da Arábia, de David Lean (1962)

2. O Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata (1988)

1. Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (1979)

sábado, fevereiro 21

Crítica: Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014)


Por Maurício Owada

"A memória de conquistas recentes,
de direitos irrefutáveis"

Enquanto alguns exaltam os heróis americanos que empunham a arma e um objetivo ilusivo, temos a memória de homens que utilizaram da não-violência e do grande debate da segregação racial, como Martin Luther King Jr., um ativista que pregava a igualdade entre as etnias, assim como a palavra de Deus em seus cultos. Com grande poder oratório, seus discursos são os mais conhecidos, entre eles "I have a dream", aonde a chama de esperança de novos e melhores tempos eram desejadas de forma tão intensa.

Com pouquíssimos filmes sobre o ativista, Selma: Uma Luta Pela Igualdade (Selma) retrata a marcha de milhares de pessoas, não só negros como também brancos simpatizantes da causa, saindo da cidade de Selma até Montgomery, no Estado do Alabama, pela direito do voto. A diretora Ava DuVernay retrata de forma sóbria e sem espetáculo de violência, ao mesmo tempo que filma com intensidade as agressões desses homens e mulheres, velhos e jovens, assim como suas reações a repressão, e sua direção de atores calca mais em um olhar mais intimista do ativista e daqueles que o cercavam, do que grandes discursos embalados por um trilha-sonora inspiradora, que já foi feito por diretores negros em outros filmes do tema, como Spike Lee e até, Denzel Washington. Ava sai do lugar comum, não utiliza tanto uma trilha convencional e insere R&B e Rap, como a música Glory.

David Oyelowo trás um personagem forte de ar complacente, encarna um Luther King que às vezes, quase se abate pelo racismo enraizado, que parece nunca ter um fim. Contando com uma gama de bons coadjuvantes, tendo ainda Carmen Ejogo, Oprah Winfrey, Cuba Gooding Jr., Tim Roth e Giovanni Ribisi, outro ator que brilha (um pouco menos que Oyelowo) é Tom Wilkinson, com uma postura mais encolhida para viver o presidente Lyndon B. Johnson, seu papel não aparece no roteiro apenas como referência histórica, mas também um alicerce de todos os acontecimentos.

Paul Webb explora em seu roteiro os diversos pontos de vista da marcha, desde os planejamentos e estratégias para atingir o objetivo com a marcha, ensinando pra muita gente que mesmo reivindicações necessitam de inteligência para que se vire o jogo contra autoridades reacionárias, até a utilização de intertextos para mostrar a espionagem que o FBI exercia em Luther King, assim como as manobras políticas para reprimir a manifestação. O roteirista destrincha os bastidores históricos e constrói de forma plena seus personagens principais, onde o protagonista vive entre o peso de sua missão e o desejo de uma vida plena, uma busca pela paz de espírito com a situação do mundo e saber do seu destino já nos livros de história trás a sensação de um homem que lutou por conquistas que ele mesmo não desfrutou.

Selma é forte em seu tema, reacende uma questão que infelizmente ainda não adormeceu, é presente na nossa sociedade e às vezes, defendida por discursos reacionários tão absurdos mesmo para um final de século XX. Demonstra a crueldade da segregação, a ignorância do preconceito e as circunstâncias trágicas e insistentes de uma sociedade que ainda não aprendeu a se acostumar com um outro indivíduo com a cor da pele diferente.

Nota: 8,5/10,0




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Crítica: O Jogo da Imitação (2014)

Por Maurício Owada

"Apesar de charmoso, o grande valor artístico 
está na atuação de Benedict Cumberbatch"

O que define ser uma pessoa normal? Normal é ter todos os braços, ser saudável e conversar e socializar naturalmente? Gostar do sexo oposto e gostar de assuntos típicos do seu sexo? Não são questões levadas muito a fundo por O Jogo da Imitação (The Imitation Game), mas Alan Turing, interpretado por um brilhante Benedict Cumberbatch, cheio de nuances e olhares inexpressivos que escondem um tormento na alma e desejos reprimidos, carrega todos esses conflitos e demonstra o medo de um indivíduo de ser condenado pela maioria, ser enxergado como pária e ser execrado pelos demais.

Talvez por isso, Alan se demonstra uma pessoa tão afastada e anti-social, enfatizando a arrogância de sua genialidade em matemática e na habilidade de resolver enigmas. Ao mesmo tempo que o roteiro aborda o trabalho secreto dele para o serviço de inteligência britânico, ajudando a construir o primeiro computador da história, afim de decodificar o Enigma, código usado pelos nazistas para mandar mensagens de guerra para definir estratégias.

A trilha minimalista de Alexandre Desplat denota os melhores momentos do filme, utilizando-a como forma de construção de clima, não de emoção, agregando um requinte diante de conflitos tão fortes, como um desejo pulsante e reprimido as lágrimas guardadas com força diante de um olhar frio fingido, ao medo de expressar suas emoções mais internas. A montagem monta a narrativa a entender o passado do personagem e as atitudes depois de adulto, como por exemplo, ele chamar o computador de Christopher e ao longo do filme, esse fato se torna mais significativo.

Cumberbatch gagueja e abusa dos trejeitos, mas jamais soa caricato em sua arrogância ou sua homossexualidade, numa atuação sutil aonde acerta em trazer um homem que se esconde e se esquiva das relações humanas. Keira Knightley tá competente como a mulher que conduz Alan além de sua matemática, para levá-lo a se relacionar e entender algo tão ilógico como o ser humano, aonde os resultados não são condizentes com os métodos de resolução.

O Jogo da Imitação é uma produção britânica charmosa, possui uma mão segura na direção e um roteiro bem estruturado, mas como todo longa da Terra da Rainha, não vai muito longe do que foi descrito nos livros em um filme realizado de forma correta, porém competente na construção do conflito e dos personagens. Uma cinebiografia que honra um homem outrora condenado por quem é, esquecido pelo que fez.

Nota: 6,0/10,0




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